terça-feira, 3 de março de 2009

Bioléotras

Tenho um coração em chamas e não chove há três semanas.

São pequenas faíscas vermelhas que pululam e povoam meu ser. O estopim ainda não consumado de um fogo mil vezes maior. Sou mil explosões por minuto, rios de risos não rasos, gritos de medos profundos. E me deixo levar, não pela correnteza, pois não sou pedra inerte nem folha amarela de outono (aqui não tem outono), mas pelo impulso do fogo que vence qualquer força gravitacional, eletromagnética, racional ou filogenética. Faz três semanas que vôo, faz quase um ano que vivo, e há menos de um segundo parei de respirar. Estou nas nuvens e não sinto gélidos pingos translúcidos tocando meu corpo ao léu. Não sinto, não leio, não chovo. Só ardo ao calor que me acompanha aonde quer que eu vá, consumindo o mundo com suas línguas e lâmbidas. E assim aprendo o céu. Tateando emoções num deserto vertiginoso.

Setembro termina o inverno e começa o tempo de flores.

Vou ao jardim e transbordo sementes. É tempo de plantio. Não quero colher os meus frutos antes de pô-los à prova. Divido minha terra em partes e rego o chão com os olhos. E choro, pois é um milagre estar tudo verde. Onde antes se via o vácuo, hoje vacúolos pulsáteis dançam ao grado do vento. O vento há de levar minhas sementes a outros vales do existir. Caminho por entre as árvores, sou feito de Jacarandá. Sou simbiose e colônia, há tantas vidas em mim... Não sei o que esperar delas, não sei o que vou colher, apenas sento à sombra da árvore e mantenho a vista em sintonia com as relações vitais que meu jardim realiza, esperando convergir cargas positivas. (Agradeço à terra.) Milhares de maçãs caem nas minhas cabeças. Milhares de maçãs e milhares de cabeças. Milhares.

Meu maior paradoxo é abrir um livro.

Sentir o papel em minhas mãos e saber que aquilo é vida. Embora processado e seco, ainda sinto a seiva correndo por todos os vasos da página, formando palavras nutritivas e fortes. Mergulho nesse espelho e sinto-me livre daquela cadeia fechada, homogênea, saturada e normal à qual me via preso. Quero ramificar, expandir os meus tons, os meus verdes, os meus leites. Vejo esse mundo tão amplo que penso em desligar-me de tudo e quebrar o espelho, deste lado pelo menos. Nem ligo pra capas e editais, quero é sugar a riqueza do mundo. Mergulho, me dispo, me exponho. Faço minhas as livrarias de Drummond.

Quero ser a cigarra, mas me faltam duas asas.

Durante três estações, fui convencido de que só chegaria Lá (onde quer que esse Lá estivesse) através de atos laboriosos que não tiveram outra utilidade senão a de explodir minhas artérias e expandir meu suor, me atolando num mar supersaturado de sal e óleo, indispensável para o movimento da máquina. Quero cantar e dançar. Quero liberdade e ousadia. Quero jogar com a sorte e ver o que acontece. E quero me mover. Quem não se move, não comove o mundo. Usarei minhas cordas vocais para proclamar alegrias e fazer do inverno, verão. Criar minhas próprias asas e abandonar a fila. Cansei de ser formiga. E tenho Dó daqueles que não querem mergulhar em Sí. Andarão em marcha Ré, ao querer dos maus ventares. Inexoráveis e irremediáveis. Procurando por um Sol, mas se afundando em sombras. Por isso canto, transformo a fé em Fá e o “Sim” em “Mim”. E danço conforme a música. A minha música. E Esopo que me perdoe, mas vou deixar o inverno pra mais tarde.

Sou aquarela.

Sou receita de bolo, sou janela e consolo pra quem quiser me ouvir. Sou ouvidos abertos a timbres ocultos, sou corpo de mais de quinhentos quilates. Sou ouro e borracha. Sou tão microscópico e olho tão pouco. Mas subo em gigantes chamados pensamentos. E asas me dou, me elevo ao espaço. E olho o mundo de um jeito estranho. Não é mais o mesmo sem mim. Nunca será o mesmo sem aquela pequena criança que veio a ele e dele saiu em busca de outros. O olhar inventa o mundo e vejo-o frágil. Sou frágil e tanto. Alvo fácil brincando num céu onde gaivotas contam histórias e almas se tornam heróis. Não sou herói, nem tenho pátria. Mas quero proclamar a República.

O tempo há de me ouvir.

Et caetera.

2 comentários:

  1. - ai ai, esses biólogos... não lembro das aulas, mas captei a mensagem. ;P

    - oh.. Fábulas de Esopo. o livro de uma coleguinha que entrou aqui em casa e permanece aqui na estante. triste. (claro que depende do ponto de vista)

    - também quero ser cigarra, mas me sobram formigas.

    - "o olhar inventa o mundo". mais ou menos. mas é bonito assim. :) vc assistiu a peça? muito bonita.

    - proclamemos então. vamo começar tudo de novo? DOIS ALTOS!

    - o tempo ouve, mas só enquanto passa. :T


    eu gostei do seu estilo leo. gostei mesmo. :)

    ps: vc sabe tantas coisas... xD

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  2. eu tinha lido rápido esse texto mas n tinha realmente lido ele... "such a beautiful mind" meu garoto...
    admiração, só isso...

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