sábado, 4 de fevereiro de 2012

A invenção da beleza

Em certo momento, sem aviso, me rendi ao wanderlust.

Deixei o porto estático em que minha alma se encontrava e segui o espírito livre que move montanhas. Me doei à corrida desbravante da vida selvagem e segui o passo dos ventos a procura de nada em específico. Era a ânsia persistente me levando para frente, sem placas de trânsito ou correntes alternadas. A partir do momento em que deixei minha origem, liberou-se dentro de meu ser uma cascata mística, mais forte que qualquer argumento anti-flutuante. E eu pude sentir na pele e nos músculos, nos ossos e no resto dos órgãos os sintomas do desejo de seguir viagem rumo ao desconhecido. Qualquer novidade era destino. Decidi que não seria ninguém até ter cruzado, no mínimo, sete mares. Pois sou mosaico, quebra-cabeça. E com minhas partes espalhadas por aí, das quais eu sinto falta sem nunca as ter conhecido, não enxergo sentido vital enquanto não estiver procurando-as. Pus a capa de viagem e me atirei à casualidade dos encontros e descobertas, pois é nisso que consiste a felicidade: ser capaz de sentir-se bem aleatoriamente, em qualquer dos cenários em que o salto lhe jogar. E foi por pura casualidade ou por mágica direção do acaso que, como vim a descobrir depois, você tinha resolvido fazer o mesmo. E foi por pura casualidade, mas da forma mais sincrônica já vista, que os caminhos se cruzaram como se cruzam os olhos que se olham e se atraem. E assim começou nossa aventura desmedida. Entre os trópicos pleuros e os polos convexos.

Na primeira vez que eu te vi, estávamos dentro do mar.

Mergulhei no atlântico. Meus pulmões me levaram ao mundo submerso e me apresentaram a seres fantásticos e cores vibrantes. Afeiçoei-me em especial por um espécime raro de água-dançante. Dançante porque sim, porque não há nada que simbolize melhor a vida do que a dança, que o movimento ordenado dos corpos. Fascinado pela dança transparente do pequeno cnidário, lancei-me a dar voltas em torno do mesmo, e nadamos em espiral por alguns segundos, ao sabor da maré e das ondas sensoriais que surgiam do polo oral do pequeno animal e se espalhavam pelo corpo através dos pentes ciliares perfeitamente posicionados em simetria radial, que ditavam o ritmo elétrico do nosso movimento transatlântico e funcionavam como um metrônomo/compasso. Não demorei muito a perceber que não estava sozinho. Notei sua presença simétrica à minha. Por uns segundos, nos olhamos através do pequeno animal, sem perder o ritmo da dança que o mesmo ditava. A sua silhueta me causava dúvidas, tanto por não conseguir delinear suas curvas ou perceber detalhes de tua anatomia quanto por não entender como o wanderlust tinha te levado até ali, a apreciar o mesmo espetáculo que eu. Não me esquivei, no entanto. Você oferecia confiança e proporcionava curiosidade. Continuamos parados por um tempo, até que fizeste um movimento facial. Pude ver a bolha de ar abandonando teus lábios e atravessando lentamente a distância que nos separava. Ao atingir o animal, o mesmo cessou suas ondas de choque, transmitindo à bolha de ar o último sopro de energia que tinha guardado. A bolha tremeu, mas se manteve firme. Tomei um choque quando ela alcançou o meus lábios. Teu beijo era forte, dormente e magnético. O impulso me fez voltar à superfície. Não demorou muito até que você também emergisse em parte e posicionasse teus olhos, dividindo-os em dois hemisférios, na exata linha da superfície onde o topo do mar encontra o fundo do céu e que é horizontal como janeiro. Cruzamos os olhos de forma bem fixa, antes que o wanderlust nos levasse adiante. Ainda chocado pelos lábios e tentando por um pouco de ar para dentro, percebi, num súbito inspiro, o que tinha acontecido antes que o vento nos levasse para o próximo acaso. Nós havíamos inventado o olhar.

Numa floresta encantada, nos encontramos de novo.

Em algum lugar das nórdicas ilhas, a terra provia o que eu precisava. Fiz ali minha morada, por mais temporária que fosse. Aprendi com os nativos os segredos da mata e, com os animais, os segredos da vida. Os cogumelos que encontrei pelo caminho viraram amigos e portos seguros. A furta-cor me encobria, camuflava meus gestos e enchia meus olhos. Era tudo tão denso e reflexo que eu não estava passivo de ser encontrado ou seguido por quem quer que fosse. Pois foi numa noite gelada, em volta da minha fogueira, que o acaso mostrou-se presente em cada cor já furtada. Eu batucava tambores fabricados de empáticas árvores. Meu pulso pulsava frenético e embalava o sono das frutas. O farfalhar das folhas gélidas denunciou sua presença. Você pulava de árvore em árvore, dando voltas em mim. Os saltos sincrônicos seguiam a ordem natural do som que nos cercava. Quando finalmente tocaste o chão, o fogo se fez mais presente e iluminou mais ainda nossa pequena clareira. Você se aproximou e pude ver nas suas mãos dois objetos brilhantes. O cachimbo dourado foi da sua boca à minha, trazendo consigo outro beijo-veludo, dessa vez mais calmo que o outro. A flauta era morena-avermelhada, da cor da sua pele e as duas só podem ter sido pintadas por árvores-de-cor brasileiras. Você, delicada e quente, lançou uma nota suave. Meus ouvidos ouviram sua alma e meu pulsos voltaram a tocar. Entre assobios fláuticos e tambores desenfreados, compomos a trilha sonora da natureza viva. Os pássaros entendiam o recado e reproduziam a melodia, espalhando pelos cantos do mundo o cântico feito por nós. O fogo dançava como uma onça-listrada. Nos entregamos ao olhar já inventado, enquanto nos comunicávamos através de mensagens sonoras. A orquestra era linda, mas uma hora cessou. E não pude deixar de sorrir ao te ver sorrindo também, pouco antes de sermos levados embora pelos mesmos ventos de outrora. Nós havíamos inventado a música.

É uma sensação única dormir e acordar nas nuvens.

Num fim de tarde simbólico, do outro lado do mundo, num céu que era cor de flamingo e morno como um lençol, flutuávamos calmamente nas partículas suspensas de água. Dessa vez não houve suspense. Você estava ali, mais clara do que nunca, com todos os detalhes ao meu alcance. Certamente nossos wanderlusts tinham baixado suas guardas, deixando o acaso de lado e procurando um ao outro. Nos sentimos melhor assim, sem escudos ou cartas anônimas pedindo licença. Cortamos o céu em todos os sentidos possíveis, deixando rastros de sorrisos enérgicos em cada curva celeste. Desenhamos figuras malucas e as dávamos de presente pro outro. Você montava uma leonesa alada e eu um pássaro branco. Mudamos a dança dos ventos e, de repente, o céu era nosso. Podia sentir teu sabor por todos os lados. Me envolveste de um jeito inumano, tímido e louco. E era tanto fim de tarde a derramar no coração que nós fomos ficando pesados, assim como nossas nuvens. Tentamos um beijo distante antes de nos lançarmos para a queda livre, enquanto nossos desenhos precipitavam em uma massa molhada e cinzenta, levando ao mundo lá embaixo o frescor do sentimento puro. Nós havíamos inventado a chuva.

Enquanto o chão que esperamos não vem, só nos resta cair em valsa.

O mar se abriu para nós. De repente, nenhum elemento ou dimensão já fazia sentido. Caíamos em direção ao centro do planeta e as cores ao redor iam deixando de ser. Passamos por todos os cenários possíveis. O mundo que nós inventamos corria por nossos olhos como uma sequencia cinematográfica bem lenta e tocante. Mas foi só quando alcançamos o Vazio que percebemos aonde o wanderlust tinha nos levado. O Vazio era branco e só branco. Não existia nada lá. Nossa ânsia persistente nos levou aonde nenhum sonhador jamais havia chegado. Se o desejo de viajar e a casualidade dos encontros se firma na necessidade humana de encontrar alguma coisa nova, já havíamos encontrado tudo que poderíamos encontrar. Não havia mais nada de novo a ser descoberto que já não tivéssemos descoberto dentro de nós mesmos. E foi ao olhar para dentro um do outro, através dos olhos opostos, nas profundezas das nossas almas sativas, que decidimos estar prontos para sincronizar os nossos tons e inventar a nossa obra-prima. Já não caíamos mais. O Vazio nos sustentava, nos dando terreno para a construção de algo que ainda não tinha nome. E foi com voracidade que corremos na direção um do outro e pela primeira vez nos tocamos. E prosseguimos o toque além das palavras não-ditas. E então, os papiros viraram papilas e eu estava tão dentro de você quanto você dentro de mim. Do córtex ao cóccix, conversamos intimamente com a linguagem dos sinais vitais e com todos os órgãos sensoriais ao mesmo tempo. Era leve e feroz, carinho e tensão. As cores voltaram e, pouco a pouco, se reposicionaram nos esquema geral das coisas, de uma forma muito mais sincera e, consequentemente, muito mais válida. Nosso sensorialismo nos levou a sensações extremas e dormimos com os prazeres na carne queimando a pele e satisfazendo a alma. Éramos a máxima poesia orgânica.

O sol me acordou pouco depois de acordar a si mesmo.

Nos vi deitados nas areias pálidas das dunas, de algum deserto romântico no centro do continente. Não era praia e não era montanha. Era algo novo. E eu, abraçando teu corpo e beijando teus olhos, acordei a ti também, para que visse o que eu vejo e sorrisse para mim. E era nítida a tua forma, a tua função e a tua firmeza. A coisa mais nítida que já vi na vida. E não eram os olhos que me garantiam isso, pois os olhos são falhos a depender da lente. Nem a música, pois esta tocava ao longe, e você estava bem perto. Nem a chuva, pois essa já tinha voltado ao reino dos céus. Era simplesmente a certeza e o bem estar de me sentir completo. Era sentir saudade e matá-la ao mesmo tempo. E eu sentia em cada poro do meu corpo, em cada gota de suor derramado naquelas areias escaldantes, mas nem por isso menos nítidas, a invenção de algo novo, que daria sentido a todas as invenções anteriores. No meu devaneio, você estalou os dedos e me trouxe de volta ao nosso roteiro.

'-Está muito quente aqui.' -você disse, ao mesmo tempo em que eu percebia que nunca tinha ouvido sua voz até então.
'-É, nunca deveríamos ter saído da água.' -brinquei, enquanto sonhava com um banho fresco e assoprava teus cabelos.
'-Se nós não tivéssemos saído da água...' -você disse em tom de magia, me rolando pra baixo e sorrindo de novo- '...nós nunca teríamos inventado a beleza!'.

E tudo de belo se fez.

domingo, 4 de setembro de 2011

Dream & Dance (A Garota dos Olhos Fantásticos)

Um sonho nada mais é do que um par de olhos fechados dançando com um par de olhos abertos.

Acredito na valsa do universo. Na eterna dança gravitacional dos corpos celestes. Como poderia nega-las? Estão ao alcance dos olhos, em céu aberto, um infinito de estrelas novas no salão das teorias cósmicas. Milhares de luzes brilhantes, ardentes, quase coracionais. E eu vago pelo céu eterno distribuindo olhares descomplexos. Quanto mais eu corro, mais eu fico tonto. E se fecho os olhos por mais de três segundos, num breve desmaio, estou sonhando. Os meus olhos fechados procuram, nas profundezas de minhas redes sinápticas, na jugular dessas minhas retinas, os últimos olhos abertos que vi; os mesmos que me causaram tontura e me fizeram fechar os olhos. É fácil ciar uma imagem no escuro da sua consciência. Difícil é fazê-la dançar.

Acordar é o momento mais perigoso do dia, como diriam os humanos que acordaram insetos.

É o momento em que se vê o que mudou durante a noite. É o momento em que todas as ondas que ultrapassaram a viva matéria, realistas ou fantásticas, se prendem aos olhos de quem acordou. É a impressão do que foi desenhado. É o bebê acordar e ver que nasceu. É o Sol levantar e já estar feito o dia. É a flor se abrir quando é primavera. São as dores no corpo e a garganta vazia. É o sangue na faca da noite passada. É o gosto do crime dormente e dormido. É o gosto do beijo do bêbado fraco. É o não lembrar se o beijo realmente aconteceu. Ninguém acorda do sonho sendo a mesma pessoa. Há um pouco de metamorfose real em cada beijo sonhado, em cada crime pensado, em cada gosto forjado. E se há metamorfose, se há sentimento incrustado, se há os prazeres (ou dores) na carne, quem pode dizer que não foi real?

Um dia, sonhei com a menina de cabelos roxos.

O roxo é o vermelho enraivado. É a cor do veneno. Dos monstros do espaço. Do fundo do lago. Do rosto apanhado. Do céu já cansado. Mas havia algo de sereno na sua imagem. Talvez o fato de estarmos juntos, e eu, sem nem saber porque eu queria aquilo, mas, de fato, querendo, olhava pros teus olhos e eles demonstravam calma. Um caminho dourado pelas tuas íris, uma estrada de tijolos lisérgicos mas, nem por isso, irreais. Havia um campo de possibilidades dentro daquele espelho e você me convidava pra entrar e correr. E uma voz me dizia que em algum ponto, no meio do vácuo celeste, no meio do campo sagrado, havia um templo. E dentro desse templo, uma jóia tão rara, que de tão rara, tinha a beleza igualada à beleza dos puros amores. Devo admitir que sou curioso e, mesmo sem saber porque eu queria aquela jóia, mas, de fato, querendo, me deixei levar pelo onírico ser que era você. Pensei muito em você por um tempo alargado. Mas eu nunca mais acordei de um beijo.

És peixe quando oferece loucura e desperta a razão.

Foi quando a aurora chegou invadindo o salão que me vi deparado com sua verdadeira forma. Você me pegou pelo braço e me levou até o outro lado do lago. Atravessamos a ponte mais longa que alguém já cruzou. E durante o trajeto, a noite foi acordando, tornando as possibilidades impossíveis. Tornando o louco, real. E o gosto do beijo foi se perdendo, pois seguiu o caminho errado, e por isso, calou-se na noite. Vi, então, a Lua abaixar seus óculos, e, pintada de cores que eu nem sei o nome, olhar em meus olhos, pela primeira vez de uma forma que eu pude ter certeza que era real. E, entao, pude observar, através das lentes leonesas que prismavam cada raio de sol e cada gota de chuva, como a luz se dividia e ferozmente iluminava cada íris de uma cor, criando nao apenas um, mas dois satélites naturais que coordenavam tudo que havia envolta desse lindo corpo celeste, capaz de gerar o frio e o calor, além de alterar as correntes marítimas. Neste momento, seu cabelo voltou a ser negro. Você me levou pro outro lado do lago e me atirou na realidade. Me acordou de um sono profundo e eu, tímido, não soube dizer o quanto era linda você de verdade.

'You two will meet, then you will have a dance. Then, your eyes will meet and it will be awkward.'

O sonho é a mais linda forma de arte. O imaginário nos leva a criar personagens que desempenham o brilhante papel de ser o que já foi, está sendo ou um dia será. O difícil é descobrir em que presente estamos. Mas, uma vez alcançada a sintonia da dança entre o par de olhos fechados e o par de olhos abertos; uma vez projetado o reflexo harmônico das íntimas íris num plano perfeito (sem altos nem baixos); uma vez amado o que nunca foi visto, e jogado no espaço há muito moldado, o prazer de um sonho firma-se no que nunca foi filmado.

Não obstante, prefiro teus olhos assim. Distantes.

Mas reais.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

A valsa das água-vivas

Aqui em baixo, a vida é muito mais difícil.

Eu não consigo ser estável. Tento todas minhas formas, só querendo me manter. Alternando gerações e explorando ambientes, evitando rimas pobres e fugindo do que dói. Passam várias correntes por mim, mas nenhuma me atrai. De uma larva a deriva, a colônia elaborada. Poderia ser mais pétreo, mas de nada adiantaria. Prefiro viver por aí, transparente como eu só. Flutuando e espalhando meus tentáculos de amor. E esperando encontrar algum. Respirar só é possível quando a água me invade. Se afogar é tentador.

Aqui em baixo, todos querem um pedaço.

É a fome submersa, a cobiça sufocada. Vem em ondas turbulentas, ou de dentro de buracos. É perigoso confiar. Onde quer que eu me encoste, tem algo espreitando cada movimento pulsante que faço. A caçada aqui é livre e acontece todo dia. Dentes e garras valem mais que um sorriso. É preciso estar atento ao que vem de cada lado. Só queria um simbionte, mas não acho nada em volta. Seja séssil ou natante, eles vivem sem sentido, com o único objetivo de sobreviver. As almas por aqui só têm olhos e estômagos. E é por isso que me escondo, é por isso que eu fujo. É por isso que me encho desse amargo veneno. É por isso que o que toco, sente espasmos urticantes. É por isso que minha pele contamina o corpo deles. Ela só quer me proteger. É por isso que eu parto e desço cada vez mais fundo, à procura de paz.

Aqui em baixo, quase não há luz.

O profundo caos marinho é o universo ao contrário. Escuridão total e estrelas espalhadas. Elas piscam e escrevem algo no painel a minha volta. Existe algo ao meu redor que quer se comunicar. Mas não consigo vê-los. Talvez nunca chegue a tal. Talvez nunca os compreenda. Como serão esses seres? Em rápidos impulsos, se deslocam a todo tempo. O movimento é tão lindo que prende minha atenção. Esse jogo de luzes frágeis brinca com meus sentidos e me deixa um pouco tonto. De repente, não sinto mais nada. E percebo que fechei os meus canais, impedindo a água agora. Totalmente paralisado, não consigo respirar. Estou caindo num abismo, e não posso ver o fundo. É quando vejo a ti.

Dançando a valsa das águas-vivas.

Sua cor é diferente. Seus movimentos também. São leves e sutis, mas espanta todos em volta. Sabes manejar a água e usá-la a seu favor. Logo, teu calor me alcança e eu acordo, enfim, da queda. Não sei mais aonde estou, nem como voltar ao raso. Sinto que tudo que eu tenho que fazer é te seguir. Nada te atinge, suas manobras são perfeitas. És a proteção em epiderme, mesogléia e osso. És a calma transparente e iluminada por si mesmo. Chego perto, preciso te sentir. Te passar a sensação que não cabe em minha cavidade. De repente, percebe minha presença. Me convida pra dançar e eu sigo o teu chamado. Nós fazemos cada passo como se fosse automático. Nós descemos e subimos, espirais, redemoinhos... e o mar é todo nosso.

E então, nossos ropálios se tocam.

Se eu tivesse, agora, um músculo toráxico que estimo que terei só daqui a milhões de anos, ele com certeza estaria explodindo. E eu fervo ao seu toque, e brilhamos como um só. Retornamos à superfície numa bolha de sabores. Tudo agora é tão mais claro, mais seguro e mais estável. A aventura continua, e não nos separamos mais. Nossas ondas se espalham e sentimos nossos poros. Não há nada comparado à cor de nossos corpos.

A vida aqui embaixo, agora é muito mais azul.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

In suburbia.

Entrego-me às ruas do subúrbio.

A cidade vazia tem cheiro de erva. As ruas parecem um pouco úmidas, nem percebi que estava chovendo. Saí de casa desprotegido, sem roupas de baixo, casacos, nem nada. E é só quando já não sei em que rua estou, que percebo que o subúrbio nunca esteve tão frio. Tiro um chiclete do bolso da calça, e mastigo frenético, como se aquele bater de dentes fosse gerar alguma faísca. Não funciona. Acendo um cigarro, só pra esquentar. A poucos metros de mim, deitado no chão, um mendigo me pede um cigarro. Basta uma olhada pra se fazer um bom negócio. Alguns cigarros por uma jaqueta, bem surrada, mas de um couro bonito e confortável. Mendigos são os habitantes mais bem preparados da terra. Me afundo no couro, me ajeito no forro.

É quando sinto alguém me olhando.

Nada de olhares fortes, amaldiçoados, perigosos. São olhos claros, sutis, que brilham no escuro e atraem os meus. Do outro lado da rua, um gato me invade de verde. Um gato. Você. Teu pêlo é branco e coberto de marcas. Marcas nada usuais. Parecem desenhos feitos à mão, milimetricamente projetados. Coloridos. Lembram sinais, embora, a essa distância, eu não tenha a menor chance de interpretá-los. Teu rabo inquieto ondula de leve, simetricamente à fumaça que escapa da brasa em meus lábios. Quando eu jogo o cigarro no chão, e o fogo apaga ao tocar nas gotas d’água, você, de repente, se torna estática. Neste momento, eu nem suspeitava, mas já estava hipnotizado. Teus olhos piscaram. Tão logo eu pisquei, e tu já estava andando, entrando na esquina mais próxima.

E, então, explode meu instinto selvagem.

Uma necessidade imensa de seguir os teus rastros. Uma onda de choques por todo meu corpo, aguçando os sentidos e me enchendo de sede. Uma vontade incontrolável, precisa e ardente de te prender em minhas garras, estudar o teu corpo, entender cada sinal ali presente. Disparo pra esquina, a procura de ti. Teus rastros têm cheiro de erva. É este o teu perfume: meu vício. Que enche a cidade de puro desejo. Corro e persisto, você não deve estar longe. Teu cheiro é fresco. Tuas pegadas são frescas. Me adentro no subúrbio cada vez mais, já perdendo a conta das esquinas que dobrei. É quando, enfim, me encontro num beco sem saída. Sinto a tua presença, mas não consigo te ver. Você tem que estar por aqui, mas nem há latas de lixo nas quais se esconder. Dois pontos brilhantes disparam pra cima.

Você está subindo pelas paredes.

Se agarra às sombras e evapora sem limites. O beco se enche de névoa, está mais frio do que nunca. Numa manobra elegante, de algum lugar lá de cima, do alto dos prédios que me cercam, você cai bem em cima de mim, me prendendo contra o chão. Congelo. Não és mais um gato. De repente, és mulher. Branca. Marcada. Teus desenhos coloridos são mais claros pra mim agora, e eu posso te ler. Teus olhos continuam a me invadir de verde. Acordo do transe. És uma armadilha. Me olha voraz e sem piedade. Seus dentes a mostra refletem meu medo. Perdi a caçada, estou tonto e inerte, vulnerável a ti. Com o resto de voz rouca que guardo em meu peito apertado, só peço que se controle. Tire apenas o que precisar de mim.

Bom, cachaça é água pra quem sabe beber.

E com língua, dentes, garras e olhos, me corta, me arranha, estraçalha e me molha com todos os fluidos que tens em você. Me rasga a pele, me enche de sangue. Tua pele é fria, e a tortura, prazerosa. Me puxa pra dentro de si, estamos um dentro do outro. Você, absorvendo tudo o que precisa, gritando com todas as cordas vocais. Eu, me expondo cada vez mais, ficando sem voz pra gritar. Suas cores começam a brilhar, e eu, a me sentir vazio. E então, na última hora, explodimos de vez. Nossos gritos se enfrentam, o teu brilho me ofusca e, no momento seguinte, você já não está mais lá. Fugiu com os ventos da noite. Em cacos, desmaio no chão. E, enquanto o que resta da noite é tomado de assalto pelo sol, e a neblina gelante se esvai de meus olhos, eu tenho certeza, que, no fundo, você só precisava de alguém pra te aquecer.

Tu és infalível.

terça-feira, 3 de março de 2009

Sensorialismo & Sigilo




Desperto no meio da noite e escrevo para o teu corpo.

Vejo mãos em cores disformes, afagando meus tons no escuro. Passam tempos até que eu perceba que é tua a pele que me toca. Matizes e tons de vermelho: é nítida tua distorção. Embriagado, não distingo teus traços. Enxergo apenas teu calor, que encharca o quarto e o lençol. Continuas a me afagar e me pede que fique onde estou. Teu tom é berrante, mistério e prisão. A rotina da mão é o toque.

Olho para o relógio e já são mais de mil horas. E o tempo não é resistência, ele está em nossa função.

Não me atrevo a olhar-te nos olhos. Tenho medo de qualquer feitiço. Mas em vão é esse feitio e teus ares me lembram suspense. São suspiros ao pé do ouvido, que descem, que sobem, que entram. Em transe, te conto desejos. Me ouves com calma e anseio. Passeio através de teus fios, castanhos, dourados, azuis. Me cobres de carne e querer e desperta meus sextos sentidos. Lúcido, corro por ti, deslizo em teu rio de sonhos. Lúcida, enxerga através de meus olhos e me atira no vale do existir.

E descubro que é válido existir.

Encontro espelhos quebrados e outras formas geométricas. Úmido o ar que nos cerca. Úmidos lábios em festa. Afogo-me em gostos e ondas. Oscilas e, trêmula, canta. É fácil morrer nesse mar e deixar que a corrente carregue. Descansas teu peso em meu peito e ateia minha íntima chama. Te chamo de luz e de cria, te cuido, te afago, te canto. Exalas teu doce perfume, que é misto de tudo que gosto. Deságuo, em teu corpo, meu ser. Tua voz ecoa no quarto, e as paredes desabam em mim. Senso, rio a esmo.

Teu sensorialismo é divino.

Envolves-te em véus coloridos, e dá piruetas de louca vertigem. Escondo-te em braços cansados, fechados e feitos de sal. Brincamos em volta do mundo e chovem grisalhos papéis. Estranha essa sua mania de conversar com nuvens. Pintar os azuis de anil e mudar a vontade dos ventos. É teu o céu que me cobre, é teu o semblante que vejo. Encontro palavras perdidas em linhas imaginárias. Mensagens do norte e do sul, pedidos de paz e conversas. Divido meu ser em dois lados e cerco teus panos finos. Você me concede um desejo e novamente estamos voando. Entre cores e sons dissonantes, é mágico o calor que te treme.

E ainda estamos um dentro do outro.

Pergunto se queres parar e viver de novo esse sonho. Agora te miro nos olhos e pinto tua boca de ouro. Teu pranto me cobre o rosto e o resto é paralisado. Ainda estamos molhados, ainda estamos aqui. Um sino bate a distância e te informa que já é tão tarde. Só ouves metade; bobagens, a noite é um túnel sem fim. Pergunto se queres parar e viver de novo esse sonho. Tu somes num gesto vazio e me toma um sentido estranho. O que será que será?

E o que seria se deveras fosse?

Agora não sinto mais nada, e torpe me embalo em teus versos. Embora já seja futuro, ainda penso no futuro do pretérito. As cortinas malucas se fecham. Desacordado, passo mil tempos afagando-te. Sensorialismo e sigilo.

Até mais ver.

Bioléotras

Tenho um coração em chamas e não chove há três semanas.

São pequenas faíscas vermelhas que pululam e povoam meu ser. O estopim ainda não consumado de um fogo mil vezes maior. Sou mil explosões por minuto, rios de risos não rasos, gritos de medos profundos. E me deixo levar, não pela correnteza, pois não sou pedra inerte nem folha amarela de outono (aqui não tem outono), mas pelo impulso do fogo que vence qualquer força gravitacional, eletromagnética, racional ou filogenética. Faz três semanas que vôo, faz quase um ano que vivo, e há menos de um segundo parei de respirar. Estou nas nuvens e não sinto gélidos pingos translúcidos tocando meu corpo ao léu. Não sinto, não leio, não chovo. Só ardo ao calor que me acompanha aonde quer que eu vá, consumindo o mundo com suas línguas e lâmbidas. E assim aprendo o céu. Tateando emoções num deserto vertiginoso.

Setembro termina o inverno e começa o tempo de flores.

Vou ao jardim e transbordo sementes. É tempo de plantio. Não quero colher os meus frutos antes de pô-los à prova. Divido minha terra em partes e rego o chão com os olhos. E choro, pois é um milagre estar tudo verde. Onde antes se via o vácuo, hoje vacúolos pulsáteis dançam ao grado do vento. O vento há de levar minhas sementes a outros vales do existir. Caminho por entre as árvores, sou feito de Jacarandá. Sou simbiose e colônia, há tantas vidas em mim... Não sei o que esperar delas, não sei o que vou colher, apenas sento à sombra da árvore e mantenho a vista em sintonia com as relações vitais que meu jardim realiza, esperando convergir cargas positivas. (Agradeço à terra.) Milhares de maçãs caem nas minhas cabeças. Milhares de maçãs e milhares de cabeças. Milhares.

Meu maior paradoxo é abrir um livro.

Sentir o papel em minhas mãos e saber que aquilo é vida. Embora processado e seco, ainda sinto a seiva correndo por todos os vasos da página, formando palavras nutritivas e fortes. Mergulho nesse espelho e sinto-me livre daquela cadeia fechada, homogênea, saturada e normal à qual me via preso. Quero ramificar, expandir os meus tons, os meus verdes, os meus leites. Vejo esse mundo tão amplo que penso em desligar-me de tudo e quebrar o espelho, deste lado pelo menos. Nem ligo pra capas e editais, quero é sugar a riqueza do mundo. Mergulho, me dispo, me exponho. Faço minhas as livrarias de Drummond.

Quero ser a cigarra, mas me faltam duas asas.

Durante três estações, fui convencido de que só chegaria Lá (onde quer que esse Lá estivesse) através de atos laboriosos que não tiveram outra utilidade senão a de explodir minhas artérias e expandir meu suor, me atolando num mar supersaturado de sal e óleo, indispensável para o movimento da máquina. Quero cantar e dançar. Quero liberdade e ousadia. Quero jogar com a sorte e ver o que acontece. E quero me mover. Quem não se move, não comove o mundo. Usarei minhas cordas vocais para proclamar alegrias e fazer do inverno, verão. Criar minhas próprias asas e abandonar a fila. Cansei de ser formiga. E tenho Dó daqueles que não querem mergulhar em Sí. Andarão em marcha Ré, ao querer dos maus ventares. Inexoráveis e irremediáveis. Procurando por um Sol, mas se afundando em sombras. Por isso canto, transformo a fé em Fá e o “Sim” em “Mim”. E danço conforme a música. A minha música. E Esopo que me perdoe, mas vou deixar o inverno pra mais tarde.

Sou aquarela.

Sou receita de bolo, sou janela e consolo pra quem quiser me ouvir. Sou ouvidos abertos a timbres ocultos, sou corpo de mais de quinhentos quilates. Sou ouro e borracha. Sou tão microscópico e olho tão pouco. Mas subo em gigantes chamados pensamentos. E asas me dou, me elevo ao espaço. E olho o mundo de um jeito estranho. Não é mais o mesmo sem mim. Nunca será o mesmo sem aquela pequena criança que veio a ele e dele saiu em busca de outros. O olhar inventa o mundo e vejo-o frágil. Sou frágil e tanto. Alvo fácil brincando num céu onde gaivotas contam histórias e almas se tornam heróis. Não sou herói, nem tenho pátria. Mas quero proclamar a República.

O tempo há de me ouvir.

Et caetera.