sábado, 4 de fevereiro de 2012

A invenção da beleza

Em certo momento, sem aviso, me rendi ao wanderlust.

Deixei o porto estático em que minha alma se encontrava e segui o espírito livre que move montanhas. Me doei à corrida desbravante da vida selvagem e segui o passo dos ventos a procura de nada em específico. Era a ânsia persistente me levando para frente, sem placas de trânsito ou correntes alternadas. A partir do momento em que deixei minha origem, liberou-se dentro de meu ser uma cascata mística, mais forte que qualquer argumento anti-flutuante. E eu pude sentir na pele e nos músculos, nos ossos e no resto dos órgãos os sintomas do desejo de seguir viagem rumo ao desconhecido. Qualquer novidade era destino. Decidi que não seria ninguém até ter cruzado, no mínimo, sete mares. Pois sou mosaico, quebra-cabeça. E com minhas partes espalhadas por aí, das quais eu sinto falta sem nunca as ter conhecido, não enxergo sentido vital enquanto não estiver procurando-as. Pus a capa de viagem e me atirei à casualidade dos encontros e descobertas, pois é nisso que consiste a felicidade: ser capaz de sentir-se bem aleatoriamente, em qualquer dos cenários em que o salto lhe jogar. E foi por pura casualidade ou por mágica direção do acaso que, como vim a descobrir depois, você tinha resolvido fazer o mesmo. E foi por pura casualidade, mas da forma mais sincrônica já vista, que os caminhos se cruzaram como se cruzam os olhos que se olham e se atraem. E assim começou nossa aventura desmedida. Entre os trópicos pleuros e os polos convexos.

Na primeira vez que eu te vi, estávamos dentro do mar.

Mergulhei no atlântico. Meus pulmões me levaram ao mundo submerso e me apresentaram a seres fantásticos e cores vibrantes. Afeiçoei-me em especial por um espécime raro de água-dançante. Dançante porque sim, porque não há nada que simbolize melhor a vida do que a dança, que o movimento ordenado dos corpos. Fascinado pela dança transparente do pequeno cnidário, lancei-me a dar voltas em torno do mesmo, e nadamos em espiral por alguns segundos, ao sabor da maré e das ondas sensoriais que surgiam do polo oral do pequeno animal e se espalhavam pelo corpo através dos pentes ciliares perfeitamente posicionados em simetria radial, que ditavam o ritmo elétrico do nosso movimento transatlântico e funcionavam como um metrônomo/compasso. Não demorei muito a perceber que não estava sozinho. Notei sua presença simétrica à minha. Por uns segundos, nos olhamos através do pequeno animal, sem perder o ritmo da dança que o mesmo ditava. A sua silhueta me causava dúvidas, tanto por não conseguir delinear suas curvas ou perceber detalhes de tua anatomia quanto por não entender como o wanderlust tinha te levado até ali, a apreciar o mesmo espetáculo que eu. Não me esquivei, no entanto. Você oferecia confiança e proporcionava curiosidade. Continuamos parados por um tempo, até que fizeste um movimento facial. Pude ver a bolha de ar abandonando teus lábios e atravessando lentamente a distância que nos separava. Ao atingir o animal, o mesmo cessou suas ondas de choque, transmitindo à bolha de ar o último sopro de energia que tinha guardado. A bolha tremeu, mas se manteve firme. Tomei um choque quando ela alcançou o meus lábios. Teu beijo era forte, dormente e magnético. O impulso me fez voltar à superfície. Não demorou muito até que você também emergisse em parte e posicionasse teus olhos, dividindo-os em dois hemisférios, na exata linha da superfície onde o topo do mar encontra o fundo do céu e que é horizontal como janeiro. Cruzamos os olhos de forma bem fixa, antes que o wanderlust nos levasse adiante. Ainda chocado pelos lábios e tentando por um pouco de ar para dentro, percebi, num súbito inspiro, o que tinha acontecido antes que o vento nos levasse para o próximo acaso. Nós havíamos inventado o olhar.

Numa floresta encantada, nos encontramos de novo.

Em algum lugar das nórdicas ilhas, a terra provia o que eu precisava. Fiz ali minha morada, por mais temporária que fosse. Aprendi com os nativos os segredos da mata e, com os animais, os segredos da vida. Os cogumelos que encontrei pelo caminho viraram amigos e portos seguros. A furta-cor me encobria, camuflava meus gestos e enchia meus olhos. Era tudo tão denso e reflexo que eu não estava passivo de ser encontrado ou seguido por quem quer que fosse. Pois foi numa noite gelada, em volta da minha fogueira, que o acaso mostrou-se presente em cada cor já furtada. Eu batucava tambores fabricados de empáticas árvores. Meu pulso pulsava frenético e embalava o sono das frutas. O farfalhar das folhas gélidas denunciou sua presença. Você pulava de árvore em árvore, dando voltas em mim. Os saltos sincrônicos seguiam a ordem natural do som que nos cercava. Quando finalmente tocaste o chão, o fogo se fez mais presente e iluminou mais ainda nossa pequena clareira. Você se aproximou e pude ver nas suas mãos dois objetos brilhantes. O cachimbo dourado foi da sua boca à minha, trazendo consigo outro beijo-veludo, dessa vez mais calmo que o outro. A flauta era morena-avermelhada, da cor da sua pele e as duas só podem ter sido pintadas por árvores-de-cor brasileiras. Você, delicada e quente, lançou uma nota suave. Meus ouvidos ouviram sua alma e meu pulsos voltaram a tocar. Entre assobios fláuticos e tambores desenfreados, compomos a trilha sonora da natureza viva. Os pássaros entendiam o recado e reproduziam a melodia, espalhando pelos cantos do mundo o cântico feito por nós. O fogo dançava como uma onça-listrada. Nos entregamos ao olhar já inventado, enquanto nos comunicávamos através de mensagens sonoras. A orquestra era linda, mas uma hora cessou. E não pude deixar de sorrir ao te ver sorrindo também, pouco antes de sermos levados embora pelos mesmos ventos de outrora. Nós havíamos inventado a música.

É uma sensação única dormir e acordar nas nuvens.

Num fim de tarde simbólico, do outro lado do mundo, num céu que era cor de flamingo e morno como um lençol, flutuávamos calmamente nas partículas suspensas de água. Dessa vez não houve suspense. Você estava ali, mais clara do que nunca, com todos os detalhes ao meu alcance. Certamente nossos wanderlusts tinham baixado suas guardas, deixando o acaso de lado e procurando um ao outro. Nos sentimos melhor assim, sem escudos ou cartas anônimas pedindo licença. Cortamos o céu em todos os sentidos possíveis, deixando rastros de sorrisos enérgicos em cada curva celeste. Desenhamos figuras malucas e as dávamos de presente pro outro. Você montava uma leonesa alada e eu um pássaro branco. Mudamos a dança dos ventos e, de repente, o céu era nosso. Podia sentir teu sabor por todos os lados. Me envolveste de um jeito inumano, tímido e louco. E era tanto fim de tarde a derramar no coração que nós fomos ficando pesados, assim como nossas nuvens. Tentamos um beijo distante antes de nos lançarmos para a queda livre, enquanto nossos desenhos precipitavam em uma massa molhada e cinzenta, levando ao mundo lá embaixo o frescor do sentimento puro. Nós havíamos inventado a chuva.

Enquanto o chão que esperamos não vem, só nos resta cair em valsa.

O mar se abriu para nós. De repente, nenhum elemento ou dimensão já fazia sentido. Caíamos em direção ao centro do planeta e as cores ao redor iam deixando de ser. Passamos por todos os cenários possíveis. O mundo que nós inventamos corria por nossos olhos como uma sequencia cinematográfica bem lenta e tocante. Mas foi só quando alcançamos o Vazio que percebemos aonde o wanderlust tinha nos levado. O Vazio era branco e só branco. Não existia nada lá. Nossa ânsia persistente nos levou aonde nenhum sonhador jamais havia chegado. Se o desejo de viajar e a casualidade dos encontros se firma na necessidade humana de encontrar alguma coisa nova, já havíamos encontrado tudo que poderíamos encontrar. Não havia mais nada de novo a ser descoberto que já não tivéssemos descoberto dentro de nós mesmos. E foi ao olhar para dentro um do outro, através dos olhos opostos, nas profundezas das nossas almas sativas, que decidimos estar prontos para sincronizar os nossos tons e inventar a nossa obra-prima. Já não caíamos mais. O Vazio nos sustentava, nos dando terreno para a construção de algo que ainda não tinha nome. E foi com voracidade que corremos na direção um do outro e pela primeira vez nos tocamos. E prosseguimos o toque além das palavras não-ditas. E então, os papiros viraram papilas e eu estava tão dentro de você quanto você dentro de mim. Do córtex ao cóccix, conversamos intimamente com a linguagem dos sinais vitais e com todos os órgãos sensoriais ao mesmo tempo. Era leve e feroz, carinho e tensão. As cores voltaram e, pouco a pouco, se reposicionaram nos esquema geral das coisas, de uma forma muito mais sincera e, consequentemente, muito mais válida. Nosso sensorialismo nos levou a sensações extremas e dormimos com os prazeres na carne queimando a pele e satisfazendo a alma. Éramos a máxima poesia orgânica.

O sol me acordou pouco depois de acordar a si mesmo.

Nos vi deitados nas areias pálidas das dunas, de algum deserto romântico no centro do continente. Não era praia e não era montanha. Era algo novo. E eu, abraçando teu corpo e beijando teus olhos, acordei a ti também, para que visse o que eu vejo e sorrisse para mim. E era nítida a tua forma, a tua função e a tua firmeza. A coisa mais nítida que já vi na vida. E não eram os olhos que me garantiam isso, pois os olhos são falhos a depender da lente. Nem a música, pois esta tocava ao longe, e você estava bem perto. Nem a chuva, pois essa já tinha voltado ao reino dos céus. Era simplesmente a certeza e o bem estar de me sentir completo. Era sentir saudade e matá-la ao mesmo tempo. E eu sentia em cada poro do meu corpo, em cada gota de suor derramado naquelas areias escaldantes, mas nem por isso menos nítidas, a invenção de algo novo, que daria sentido a todas as invenções anteriores. No meu devaneio, você estalou os dedos e me trouxe de volta ao nosso roteiro.

'-Está muito quente aqui.' -você disse, ao mesmo tempo em que eu percebia que nunca tinha ouvido sua voz até então.
'-É, nunca deveríamos ter saído da água.' -brinquei, enquanto sonhava com um banho fresco e assoprava teus cabelos.
'-Se nós não tivéssemos saído da água...' -você disse em tom de magia, me rolando pra baixo e sorrindo de novo- '...nós nunca teríamos inventado a beleza!'.

E tudo de belo se fez.

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