quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

In suburbia.

Entrego-me às ruas do subúrbio.

A cidade vazia tem cheiro de erva. As ruas parecem um pouco úmidas, nem percebi que estava chovendo. Saí de casa desprotegido, sem roupas de baixo, casacos, nem nada. E é só quando já não sei em que rua estou, que percebo que o subúrbio nunca esteve tão frio. Tiro um chiclete do bolso da calça, e mastigo frenético, como se aquele bater de dentes fosse gerar alguma faísca. Não funciona. Acendo um cigarro, só pra esquentar. A poucos metros de mim, deitado no chão, um mendigo me pede um cigarro. Basta uma olhada pra se fazer um bom negócio. Alguns cigarros por uma jaqueta, bem surrada, mas de um couro bonito e confortável. Mendigos são os habitantes mais bem preparados da terra. Me afundo no couro, me ajeito no forro.

É quando sinto alguém me olhando.

Nada de olhares fortes, amaldiçoados, perigosos. São olhos claros, sutis, que brilham no escuro e atraem os meus. Do outro lado da rua, um gato me invade de verde. Um gato. Você. Teu pêlo é branco e coberto de marcas. Marcas nada usuais. Parecem desenhos feitos à mão, milimetricamente projetados. Coloridos. Lembram sinais, embora, a essa distância, eu não tenha a menor chance de interpretá-los. Teu rabo inquieto ondula de leve, simetricamente à fumaça que escapa da brasa em meus lábios. Quando eu jogo o cigarro no chão, e o fogo apaga ao tocar nas gotas d’água, você, de repente, se torna estática. Neste momento, eu nem suspeitava, mas já estava hipnotizado. Teus olhos piscaram. Tão logo eu pisquei, e tu já estava andando, entrando na esquina mais próxima.

E, então, explode meu instinto selvagem.

Uma necessidade imensa de seguir os teus rastros. Uma onda de choques por todo meu corpo, aguçando os sentidos e me enchendo de sede. Uma vontade incontrolável, precisa e ardente de te prender em minhas garras, estudar o teu corpo, entender cada sinal ali presente. Disparo pra esquina, a procura de ti. Teus rastros têm cheiro de erva. É este o teu perfume: meu vício. Que enche a cidade de puro desejo. Corro e persisto, você não deve estar longe. Teu cheiro é fresco. Tuas pegadas são frescas. Me adentro no subúrbio cada vez mais, já perdendo a conta das esquinas que dobrei. É quando, enfim, me encontro num beco sem saída. Sinto a tua presença, mas não consigo te ver. Você tem que estar por aqui, mas nem há latas de lixo nas quais se esconder. Dois pontos brilhantes disparam pra cima.

Você está subindo pelas paredes.

Se agarra às sombras e evapora sem limites. O beco se enche de névoa, está mais frio do que nunca. Numa manobra elegante, de algum lugar lá de cima, do alto dos prédios que me cercam, você cai bem em cima de mim, me prendendo contra o chão. Congelo. Não és mais um gato. De repente, és mulher. Branca. Marcada. Teus desenhos coloridos são mais claros pra mim agora, e eu posso te ler. Teus olhos continuam a me invadir de verde. Acordo do transe. És uma armadilha. Me olha voraz e sem piedade. Seus dentes a mostra refletem meu medo. Perdi a caçada, estou tonto e inerte, vulnerável a ti. Com o resto de voz rouca que guardo em meu peito apertado, só peço que se controle. Tire apenas o que precisar de mim.

Bom, cachaça é água pra quem sabe beber.

E com língua, dentes, garras e olhos, me corta, me arranha, estraçalha e me molha com todos os fluidos que tens em você. Me rasga a pele, me enche de sangue. Tua pele é fria, e a tortura, prazerosa. Me puxa pra dentro de si, estamos um dentro do outro. Você, absorvendo tudo o que precisa, gritando com todas as cordas vocais. Eu, me expondo cada vez mais, ficando sem voz pra gritar. Suas cores começam a brilhar, e eu, a me sentir vazio. E então, na última hora, explodimos de vez. Nossos gritos se enfrentam, o teu brilho me ofusca e, no momento seguinte, você já não está mais lá. Fugiu com os ventos da noite. Em cacos, desmaio no chão. E, enquanto o que resta da noite é tomado de assalto pelo sol, e a neblina gelante se esvai de meus olhos, eu tenho certeza, que, no fundo, você só precisava de alguém pra te aquecer.

Tu és infalível.